22.12.09

* * *


No asfalto quente de todo dia


A sola do pé fica em carne viva


Durante a noite você espera que cicatrize


Pela manhã descobre que se desgastou até os joelhos


Você se acha um anormal


Mas ao lado há outro que se desgastou até o pescoço.


15.12.09

(Conto): MARTINHA, 8 ANOS


Incontinência urinária, é por isso que a pequena Martinha está agora na sala da psicopedagoga da pequena escola que fica no centro da cidadezinha do interior. Escolinha de ensino fundamental simpática, cheia de desenhos fofinhos e coloridos pelas paredes.

- Estou preocupada com você, Martinha. Todo dia agora você faz xixi nas calças – a menina como de costume fica cabisbaixa, não consegue olhar nos olhos de ninguém e muito menos pronunciar uma palavra. A psicopedagoga, que é uma mulher muito legal mas incompetente, a deixa ir.     

A menina quando chega na grande e confortável casa de seus país, logo vai brincar com seu filhote, um gatinho branco, sem nome ainda, que os pais lhe deram na tentativa de que ela saísse do casulo. Martinha está sozinha em casa. Na cozinha, dá leite em uma tigela, enquanto o bichano esfomeado se alimenta, a menininha com sardas liga o microondas prateado e reluzente na tomada, coloca na potência máxima, nove minutos no time e põe o gatinho lá dentro para cozinhar.

Martinha não tem incontinência urinária por dois meses.  


(Gilberto Caetano)

...

20.10.09

* * *


Em certo momento da noite

Bateu uma saudade

De uma época em que ele gostaria que fosse diferente

Que fosse mais simples e sincera

Que tivesse aprendido antes do tempo

Uma tristeza tão inusitada e oportuna

Que o fez refletir sobre hoje

E só isso.

13.10.09

(Conto): QUANDO A FESTA ATINGIR O GRAU ALCOÓLICO NECESSÁRIO


- Eu poderia ter ido à reunião.
- Sem chance. Você nunca vai.
- Você está dando em cima de mim?
- Eu sou hetero. Eu tenho namorado.
- Ser hetero, homo ou qualquer outra merda não significa nada.
Carla ri alto. Algumas pessoas que estão na Exposição a olham. Carla sabe chamar a atenção, tanto por sua risada ou gestos ou lábios ou coxas... seria difícil um escritor sem preguiça descrever, diria que ela seria como uma Silvia Saint mais volumosa. Vinte e seis anos.
- Por quê aqui? – ela pergunta.
- Você precisa abrir sua mente, Carla.
- Abrir minha mente? Olhe ao redor, Neli. Um bando de gente metida a intelectuais olhando estes plásticos derretidos, ferros tortos e tinta sem nexo em um pano na moldura. Está vendo aquele cara ali? – um homem magrelo olhando fixamente para uma pintura de algo parecido com um celular em volta a riscos vermelhos – ele está ali a 20 minutos. Ele não tem a mínima idéia do que aquilo quer dizer!
- E você sabe?
- Neli, isso não vai me ensinar a ser uma stripper melhor.
- Talvez não. Mas..
- Neli, Neli... Pára de querer ficar me analisando. Pára de querer me ajudar. Você não tem vida própria não? Você é uma morena gostosinha, magra, teus pais te sustentam, tem até um namorado chato que talvez, eu disse, talvez, fode direito...
- Fala baixo.
- Por que? Esse bando não fode? Você vai pra’quela reunião de programa de prevenção de DST / AIDS. Você só tem vinte e dois anos, vai viver!
- Eu só gosto de conversar com você, Carla, é só isso.
- Tá bom. Mas que aqui é chato pra caralho, isso é.
- É... um pouco.
- Da próxima vez me leva pra um barzinho e paga a cerveja. Que porra é essa?
Elas param em frente a uma entrada para uma Instalação. Não conseguem ver o que acontece lá dentro, nenhum som, nada. Ao lado uma placa com o título da obra: Quando A Festa Atingir O Grau Alcóolico Necessário. Autor: Greco Lima. Data: Junho de 2005.
- É uma vídeo-instalação – diz Neli, abrindo a cortina preta e grossa. – Festa e álcool devem dizer algo pra você.
- Ééé – Carla responde rindo.
Elas entram. Passam por várias cortinas, cada vez mais pesadas, espessas e escuras. Um cheiro estranho de vinho. Carla e Neli chegam a um quarto, chão iluminado por pequenas lâmpadas vermelhas. Carla olha, procura por algo e pergunta:
- Não era pra ser uma instalação de vídeo?
- E se eu estivesse dando em cima de você?
- O quê, Neli?
Um raio fino e fraco de luz cruza o espaço até uma das quatro paredes. Ela cresce e logo toma conta de toda a parede. Outras três surgem para as outras três paredes. Luz branca para vermelho. A imagem no vermelho se movem como areia. Um som de burburinhos. O vermelho chapado com areia movimenta até formar pessoas, paredes, chão e teto. O vermelho fica colorido. Carla e Neli ficam cercadas de imagens de pessoas em uma festa muito comportada. Homens e mulheres, brancos e negros. Garçons passam com bandejas com taças com vinho. Carla fica salivando. Desejando apenas algumas gotas. Neli vê um homem muito parecido com seu namorado: alto, negro, do tipo bem sério que quando sorri cativa qualquer mulher. Ela aproxima da imagem na parede e esbarra em uma taça e derrama vinho pelo chão. A jovem pega o objeto do chão.
- O quê é isso? – pergunta Carla.
- Eu achei no chão. Estava com vinho.
As pessoas nas imagens bebem mais. Um homem olha para Carla, bebe vinho, seus olhos parecem penetra-la. Ela se aproxima. Passa a mão na parede, a imagem do homem fica sobre sua mão. Ele coloca a língua para fora e lambe.
- Caramba!
- Que foi?
- Eu senti como se esse cara lambesse minha mão.
- Aquele cara que está rindo?
- É.
As pessoas nas imagens bebem mais. O cheiro do vinho mais forte. Neli e Carla começam a ficar um pouco zonzas. A música techno indiana inunda como uma enxurrada sem violência, chega ao cérebro como heroína.
- Vamos sair daqui – Carla pede a Neli que nem escuta.
As pessoas bebem mais e mais e mais. Sorriem. Gritam. Um deles tira a camisa e rebola sobre o sofá, outro homem dança com ele, se agarram, se beija. Mais homens agarram o alegre sem camisa, o seguram e o estupram. Três homens seguidos gozam dentro dele. Neli fica estática. Carla começa a dançar. Outra taça de vinho no chão. Carla bebe. Neli a puxa para a saída. Mas onde ela está? Por onde ir? Elas são empurradas e caem no chão?
- Isso é brincadeira, né?
Elas levantam, são empurradas de um lado para o outro. Nas imagens, as pessoas tiram suas roupas. Homens estupram homens, mulheres estupram mulheres. E invertem as posições. O gozo explode, mistura ao vinho e enche a sala. Neli e Carla molham os pés. Gritam por socorro em vão. Eles riem e continuam gozando, gozando, gozando. O vermelho do vinho com o branco do gozo se misturam e chegam a metade da canela da stripper e da aluna de psicologia. Cabras passam nadando de um lado para o outro, uma delas pára.
- O quê foi? – fala a Cabra.
- Me diz que essa cabra não está falando? – murmura Carla.
- V-Você s-sabe sair daqui?
- Mergulhem.
A cabra mergulha e some.
- Mergulhar na porra?
- Nunca gozaram em você antes?
- Já mas nunca nadei em porra com vinho.
Elas respiram fundo e mergulham. Nadam. De início com muito esforço depois se deixam levar pela correnteza até desembocar em uma piscina. Finalmente conseguem respirar. Carla quer gritar caralho bem alto mas Neli tapa sua boca, pede silêncio. Elas vêem os estupradores e os estuprados dentro da sala ao lado da piscina. Os homens e mulheres nas imagens na vídeo-instalação agora bem vivos e reais. Fechados por paredes de vidro. Um Sol de luz preta deixa o céu como a noite mas há um calor como o dia, nenhuma sombra.
- A gente tem que fugir daqui.
- Como? Você sabe onde está?
- Você prefere ficar esperando ser estuprada?
- Não estou vendo ninguém chorando lá dentro.
- Carla, você é retardada? Isso não vai acabar bem pra nós.
Neli puxa Carla para fora da piscina e se afastam Deles mas param na borda para não cair no vazio. A sala de vidro e a piscina e todos estão sobre uma fôrma redonda e a fôrma sobre uma mão de mármore. O Sol Preto desce.
- Puta-que-o-pariu – diz Neli.
Eles param de estuprar, beber e gozar e aproximam da parede de vidro. Todos encaram as duas moças.
- O quê a gente faz?
- Vamos pular.
- Pular pra onde, Neli?
- Para o que tiver lá embaixo.
- Prefiro ser sodomisada.
O Sol Preto desce rápido. Eles batem no vidro que racha e quebra. Homens e mulheres, nus e soados, correm para agarra-as. Carla dança, rebola, faz caras e biquinho de desejo, faz o que sabe a stripper mais gostosa. Neli pula – ela não sabe rebolar. Cai direto no Sol, que está abaixo. Sua carne dissolve, o esqueleto permanece. Ela caminha sobre a superfície quente. Neli não consegue mais pensar ou sentir algo que não seja uma confusão sem tamanho. Olha sua mão, tórax, pernas. Ossos, apenas ossos. Esqueletos de cabras passam por elas. Ela olha a mão de mármore que segura a fôrma. Vem gritos lá do alto. Neli senta e espera.
Carla foi estuprada. Algumas vezes. Depois dezenas de vezes. Horas depois, centenas de vezes. Sua boceta e cú estão como ferro incandescente. Não consegue mexer nada da cintura para baixo. Ela se arrasta até a borda e grita o nome de Neli. Neli sentada sobre o Sol escuta mas o que pode fazer? Continuar sentada talvez para sempre. Carla faz mais um esforço e se joga da fôrma. Cai no Sol e fica só o esqueleto, e o melhor, como sua pela e órgãos se foram. Sem dor na boceta, sem dor no cú. Ela consegue ficar em pé e pula de alegria.
- Não sei porque você está tão alegre – fala Neli.
Carla aproxima, senta ao seu lado.
- Você não sabe a dor que é.
- Falei que não ia acabar bem.
- Será que a gente morreu na sala?
Silêncio.
- Carla?
- Humm.
- Sabe, você não me respondeu se eu tivesse dando em cima de você.
- Eu não acredito. Olha isso.
Logo a frente um gigante olhando para elas. Observando cada detalhe.
O homem magrelo observa o quadro de um Sol Preto, atrás uma mão que segura uma fôrma, que tem uma casa de vidro quebrada e pessoas se amando nuas e sobre o Sol duas pequenas caveiras.
- Esta mão segurando a fôrma é o clichê de um quadro surrealista, não? – fala o homem magrelo.
O quadro é rasgado e de dentro dele saem Carla e Neli ainda como esqueletos. Todos ficam estáticos, por alguns segundos. A música chata pára. Qualquer relógio pára. A Terra fica sem girar. Um efeito de sombra como o efeito da Conga, A Mulher Gorila, Neli e Carla voltam a ter carne – boceta e cú estão incluídos – e estão nuas. Todos na exposição de artes plásticas aplaudem. Grande performance. Alguns gritam entusiasmados e perplexos.
Carla e Neli se abraçam e andam nuas até a saído do prédio. Que alívio, que sensação ótima elas sentam. Andam pela calçada e admiram o Sol Preto da noite que as aquece.
- E agora? – pergunta Neli.
- Vamos pra minha casa.
- E?
Carla gargalha tão alto que toda a cidade acorda.
Por onde elas passam, as pessoas tiram suas roupas e trepam sem preocupações. Trepam e gozam. E o gozo escorre pelo asfalto junto com o suor e o sereno da noite e formam poças. Homens e mulheres, negros e brancos, se divertem nelas. E tudo está normal novamente como um quadro em uma exposição chata.

(Gilberto Caetano)

6.10.09

(Conto): A TERRA DAS SOLUÇÕES FÁCEIS

ZULEICA DA SILVA é uma velha com o rosto muito mais envelhecido do que se você ver em seu RG. Ela veste roupas surradas, sujas e rasgadas – não poderiam ser diferentes. Ela caminha sete quarteirões do ponto de ônibus onde desce até o banco financeiro onde se senta todos os dias para pedir esmolas. Caminha com extrema dificuldade auxiliada por uma bengala.

Ela senta no seu ponto, estende o pratinho de plástico para que as pessoas joguem suas moedas e tira os panos que cobrem as suas pernas. Nas pernas existem grandes feridas, do tamanho da palma da mão de um adulto e em carne viva. Verdadeiramente repugnantes. Cheiram a podre. E essas feridas doem e muito. Zuleica fica com os olhos cheios de lágrimas a todo o momento. Dor, dor. Moscas nojentas pousam nas feridas. Quando começou a mendigar, ela às vezes cobria as pernas por causa das moscas mas quando o fazia as pessoas não se comoviam com seu sofrimento, as feridas tem que ser vistas e quando as pessoas a vêem elas jogam suas moedas cheias de pena e remorso e logo se esquecem de Zuleica depois de ultrapassarem duas esquinas.

O dia passa lentamente. Seu almoço é uma coxinha que um menino de rua lhe comprou. Sobram treze reais e quarenta e cinco centavos ao fim da tarde. Ela guarda seu dinheiro junto o pratinho de plástico, cobre as feridas nas pernas, levanta com dificuldade. Caminha de volta por sete quarteirões até o ponto de ônibus. Sua condução chega, ela entra, não paga, ninguém consegue ficar ao seu lado. O cheiro é insuportável, as feridas fermentam durante o dia ao Sol e no ônibus, o ar fica irrespirável. Zuleica tem a vontade de ter um diálogo qualquer com alguém, conversar sobre qualquer coisa, ela treina às vezes de frente ao espelho, esperando que no dia seguinte isso possa ocorrer. Falar de como foi seu dia, das coisas que viu. Ninguém fica perto, todos se afastam. Às vezes tem medo de que a única frase que saiba dizer é:

- Me ajude. Uma esmola, por favor.

E é realmente o que as pessoas escutam de sua voz. As únicas frases.

Ela chega a sua casa de madeira, afastado de tudo, quase no meio de uma mata. Coloca o dinheiro em um pote de plástico. Toma banho de água quente. Veste roupas velhas e limpas. Come seu jantar: arroz, feijão, ovo mexido, farinha e com uma pimentinha que arde pouco mas deixa uma sensação boa na boca. Quando satisfeita, lava a louça e pega uma pequena espátula em cima do armário.

Ela senta no sofá e com a espátula raspa as feridas. Todas. Uma a uma. Dor, dor. É muito para Zuleica mas ela não cede. Raspa todas para que continuem a ficar em carne viva.
Zuleica da Silva faz isso todas as noites.

Amanhã será outro mesmo dia.


(Gilberto Caetano)

29.9.09

* * *



Sussurram no meu ouvido:
“Toda informação é filtrada, manipulada, imprecisa”.

Não dormi por três dias... e voltei a assistir o Jornal Nacional.

22.9.09

(Conto): AQUILO QUE NÃO SOMOS


WILLIAM NETO escreve a seguinte carta num papel de caderno solto e com uma caneta azul:
Não somos brancos nem orientais
Não somos um barco à vela a seguir
Nem carteiros para levar mensagens
Não somos ricos
Nem miseráveis
Não somos nem o bem nem o mal
Não somos negros
A beleza não está em nós
Nem a alegria
Somos a maioria da minoria
Não falamos e nem escrevemos corretamente
Não somos visíveis
Às vezes totalmente descartáveis
Às vezes totalmente inúteis
Não temos o amor
Ele raramente nos visita
Não temos a sabedoria de dar atenção a quem está do nosso lado
Somos solitários
Às vezes autodestrutivos
Drogados de drogas legais
Estas palavras são para dizer o que não somos
Ainda assim somos incompetentes e fugimos do título
Eles não acreditam que podemos fazer
Dizer que existem milhares como nós
Sem voz
Sem atitudes que realmente contam
Sem aquilo que sonhamos
Não somos doentes terminais
Mas temos uma doença sem cura
Às vezes somos piegas
Não fazemos sexo com quem gostamos
Apenas com prostitutas e garotos de programa
Não temos sorte
Não ganhamos nenhum jogo
E eles riem de nós
Falam pelas costas de nós
Temos vontade de terminar com tudo
Por meio de qualquer maneira indolor
Mas não somos corajosos
Não somos vítimas
Não somos testemunhas
Não somos aqueles que têm certeza
Não pertencemos a nenhum filme
Não somos os heróis
Nem mesmo os coadjuvantes
Somos talvez os figurantes no fim da rua, lá longe, que ninguém percebe
Ninguém nos apoia
Ninguém nos ouve
Não somos indivíduos diferentes
Não criamos nada
Somos artistas em reinventar
Não somos aqueles que especulam
Não somos aqueles que escrevem as letras para as músicas bacanas
Não falamos outras línguas
Não conhecemos outros países
Não somos calmos
Não temos um raciocínio linear
Já não sabemos de nada
Há dez anos, tudo poderia dar certo
Daqui a dez anos o que está dentro de nós será o mesmo e o que nos rodeia será pior
E por fim, não somos originais.
A esperança se foi pelo ralo no meu banho pela manhã
E é tarde demais para tudo...
Ps.: A resposta não está na cabeça daqueles que se julgam saber de tudo
Está naqueles que se identificam com uma só linha.
William Neto suicida-se deixando a carta sobre seu corpo, mas ao fim, uma leve brisa leva o papel até uma poça de água, a tinta da caneta se espalha e ninguém saberá quem foi William Neto. Absolutamente nada.


(Gilberto Caetano)

15.9.09

MORDAZ - Ed. 02




NESTA EDIÇÃO:

CAPA:
BRASÍLIA: OS POLÍTICOS SÃO UM REFLEXO DA SOCIEDADE OU A SOCIEDADE É UM REFLEXO DOS POLÍTICOS?
CONHEÇA AS RESPOSTAS DOS CIENTISTAS.

Outros Destaques:
* Como o sistema patriarcal judaico-cristão FERROU com as Mulheres.
* Quem terá coragem de produzir um Filme sobre a Elite do Brasil?
* Sacha Baron Cohen – O cara que expõe os preconceitos.


(Todas as imagens foram retiradas do Tio Google).

8.9.09

(Conto): PULMÃO (*)

Nunca fui de fazer exercícios. Até que batia uma bola uma vez por mês junto com amigos, mas a cerveja depois dos jogos era o que me fascinava. Minha alimentação também não é de toda ruim. Como razoavelmente pouco, menos nos Domingos. Ah, os Domingos. Minha mãe cozinha maravilhosamente bem, sempre com seus temperos surpreendentes que tornam um simples franco frito em algo encantador e a gordura passa despercebida pela língua e cai no estômago suave e querendo mais.

Neste Domingo despretensioso, logo hoje quando vou ver o meu Santos ganhar, sinto uma dor nas costas. Algo que nunca tive antes. Tenho um leve receio. A dor aumenta.

- Você está bem? – pergunta Claudia, minha namorada.

- A dor vem e vai.

Deixo a família preocupada e o meu querido Santos só empata, dia ruim, mas preciso apenas descansar um pouco que melhora. Mentira, não melhora nada. No dia seguinte a dor teima em queimar as minhas costas, nem consigo levantar para trabalhar. Ela não aumenta mas incomoda e muito. Sinto um ligeiro medo por uns instantes. Não fumo. O quê pode ser. Pode ser pneumonia. Gripe suína. Sei lá.

Chego ao médico sozinho. Depois de uma consulta relativamente rápida – o que me deixa mais preocupado – tiro uma chapa do pulmão. Volto ao consultório médico. E ele vê uma mancha no raio-X, no meu pulmão direito. Uma porra de uma mancha. Merda.

- Eu estou com pneumonia, doutor? – eu pergunto com medo da resposta.

- Não me parece.

Falei que estava com medo.

- Pelo jeito pode ser câncer.
- Câncer... você tá de sacanagem, né, doutor?
- Por que sacanagem?
- Você não tem uma técnica pra dizer pro paciente de que ele tá ferrado?
- Você não está ferrado. Esse “objeto” é um pouco estranho também para ser um câncer, mas por ser um câncer. Então, vamos fazer alguns exames.
Eu tô ferrado, cara. Eu vou morrer. A primeira coisa que faço depois que saio do consultório é ir para a casa de Cláudia e fazer amor. Mas não consigo a dor nas minhas costas é maior. Uma dor parece enraizada na minha coluna. Dói mais.

Durante uma semana, sinto esta dor, com toda a minha família no meu ouvido, quase implorando para que eu volte ao médico. Sou teimoso. A dor me deixa tonto. Logo volto ao hospital. Mais exames chatos, doloridos e eu não agüento.

A última coisa que lembro sobre um leito e tomando uma anestesia geral e o cirurgião me consolando, dizendo que eu vou me recuperar da cirurgia da retirada do câncer do meu pulmão direito. Queria não perder o meu pulmão. E se vejo uma luz, fujo ou vou para ela? Dizem que no limite entre a vida e a morte as pessoas, por alguns segundos, veem toda a sua vida passar por seus olhos como um filme. Eu odeio cinema, estou me cagando de medo e não consigo pensar em nenhum momento importante. Estou apag... and... o... ag... or... a...

(Oi, meu amor).
(Você está bem).

Minha santa... morri, é a voz da minha avó.

- Não é a voz da tua avó.
- Cláudia? Mãe? Pai?

Estão todos ali no meu quarto. Felizes por mim.

- Eu... eu perdi meu pulmão direito?
- Não. Você está inteiro.

Maravilha. A única coisa estranha é uma concentração de pessoas fora do meu quarto.

- O quê está acontecendo lá fora?
- São repórteres.
- Ué?

O médico sai de trás dos meus pais com uma fotografia e eu a vejo. Parece uma planta ou algo parecido envolto em sangue e com as folhas mortas.

- O quê é isso?
- Uma muda – responde o médico.
- Hã?
- Uma muda de um eucalipto.
- Hã?
- Você entendeu, vai.
- Essa muda... não era um câncer que eu tinha?
- Nós suspeitamos que seria um câncer mas durante a cirurgia havia uma planta no seu pulmão.

Esse eucalipto.

- Mas como é possível?
- Sei lá. Deve ter entrado uma semente pelo teu nariz quando criança. No teu pulmão onde tinha ar, água e... sangue. Mas o que mais me intriga é que não havia luz. Então, sei lá. O importante é que você está bem.

Pô, eu tinha uma vida comum e de repente minha vida estava nos telejornais, jornais, blogs, portais e e-mails. O país sabendo que eu criei uma planta no pulmão. Biólogos me examinando.

- Você tem vergonha disso?
- Claro, Cláudia! As pessoas me olham na rua quando passam e cochicham: olha lá, o homem planta, o Monstro do Pântano. Meu filho será o Filho do Monstro do Pântano! Ou o homem samambaia.
- Não exagera. Amanhã ninguém vai lembrar disso.

Cláudia estava certa. Depois de um tempo ninguém mais se preocupou comigo.

Numa noite, com a cabeça no travesseiro, pensei que poderia tirar algum proveito da minha súbita fama mas nenhuma idéia empreendedora me parece genial. Amanhã eu volta a trabalhar na quitanda. A minha vida inteira eu vou me perguntar porque isso aconteceu comigo.

E até no final deste conto, continuo o mesmo personagem sem nenhuma mudança por mais fantástico que me tenha acontecido e eu gosto disso isso.

(*) baseado em uma história real.

(Gilberto Caetano)

25.8.09

(Conto): PSICOSSEXO


Punheta.

A definição na vida de muitos homens.

Uma punheta bem batida, para alguns, é melhor que sexo. Para JOSUEL FERREIRA isso é uma verdade absoluta. Ele é um punheteiro de primeira. Namorando ou não. De uns anos para cá, ele está mais solitário, por opção, já que suas últimas namoradas lhe enchiam mais o saco do que lhe davam prazer. Não era culpa delas, ele preferia seu melhor companheiro, o DVD-player. E a mão. Josuel hoje está viciado e solitário. E é feliz!!

A punheta começa como um ritual, não é só colocar o pau pra fora e movimentar a pele rapidamente para que o gozo chegue logo, não, não é isso. O gozo é a consequência, o bom da punheta é o tempo que você aguenta para o prazer, aquela quase gozada que não sai. O ritual começa quando se coloca o filme no DVD-player, cheio de expectativas quando a diva que irá aparecer. O jeito gostoso em que ela irá gemer, andar ou o melhor close-up. Josuel senta no sofá, controla o volume – claro que o bom punheteiro se preocupa com os vizinhos. Relaxa. Espera que seu pinto manifeste-se primeiro com Brianna Love rebolando na TV de 32 polegadas, linda. Josuel é capaz de sentir o cheiro dela. E depois com Jú Pantera. Ele assiste a dois filmes inteiros. Três horas de masturbação. Seu pulso dói depois que goza e o corpo esfria. Uma dor gostosa. O coração volta a bater normalmente.

Seu vício aumenta a tal ponto que Josuel não trabalha mais. Acorda às 9, dorme às 2 da madrugada. Cinco punhetas diárias. Com o passar dos dias, não abre mais as janelas. E depois de meses o cheiro de porra impregna todo o apartamento. Sai apenas para comprar mais filmes piratas na barraquinha em frente ao prédio onde mora, ao lado da 24ª DP. Seu acervo já conta com 213 filmes, muitos norte-americanos, brasileiros e alguns tchecos.

Numa das manhãs, extremamente comum, no seu café da manhã, acontece algo que o deixa em estado de êxtase. Quando Danilinha Mete-Mete aparece com seu corpo moreno escultural, deusa é pouco. Ela pára de rebolar e abaixar o nano-shorts e diz olhando nos olhos de Josuel através do tubo da TV:

- Você vai bater uma punheta bem gostosa pra mim, vai?

- C-claro – Ele responder sem pensar.

- Você queria apertar minha bunda, né?

Josuel baba quando a câmera focaliza a bunda perfeita e ela rebola. Pra caralho nenhum brochar. E aí o inusitado:

A rabuda sai da TV, literalmente, e continua rebolando. Uma punheta sônica, mão subindo e descendo no pau médio em grande velocidade. Ele tenta apertar a bunda mas ela é intangível, tipo um holograma 3D, coisa de ficção científica. Mas é quase real. É real pra caralho. A porra se espalha pela sala inteira, paredes meladas e um orgasmo que nunca Josuel atingiu antes. A rabuda sorri satisfeita e volta para dentro da TV. Ele sabe que isso é loucura, a gostosa não existe fora do DVD, não daquele jeito em que ela se mostrou.

- Como você se chama? – Danilinha pergunta de dentro da TV.

- J-Jo-Josuel...

- Josuel, gostoso – diz fazendo biquinho – bate mais uma pra mim, bate?

Em vinte segundo ele goza novamente.

A cada novo DVD, uma gata sai para visitá-lo fora da TV: Sylvia Saint, Mônica Santiago, Phoenix Marie, Rachel Starr, Melissa, Jayden James, Babalú, Aurora Jolie, Alize e Sabrina Lins. De cinco punhetas diárias antes, agora nove.. De nove para doze. Seu pinto lateja mas Josuel continua firme. Firme, obsessivo e orgulhoso.

- Bate uma para mim gato? – diz Yul.

- Não! Pra mim, gostosão! – grita Karla King.

- Você sabe que eu sou sua preferia – suplica de quatro Jiji.

Todas elas suplicando e exigindo mais de Josuel, mais, mais. Claro que ele se perde, seu pinto demora cada vez mais para endurecer e dói. Arde. Queima. Sua cabeça lateja como depois de cheirar lança perfume. Muito pior até.

- Goza pra mim!

- Pra mim, Josuel!

- Eu! Eu! Eu!

- Chega! Me deixa! – ele grita levantando do sofá tremulo.

- Não! – todas elas gritam em uníssono.

Elas pedem enquanto ele dorme. Pedem enquanto ele come. Quando toma seu banho. Josuel possui um único momento de sossego. Exigem dele, gritam, esperneiam para uma nova punheta e no seu desespero, Josué pega uma faca de cozinha enferruja e cega e decepa seu pinto. Seu precioso, como diria Gollum. Auto-castração. As vozes traiçoeiras e perversas cessam.


Josuel cai no chão da sala sangrando com seu pinto morto na mão. Rasteja para desligar a TV, mas, não consegue. Elas estão lá dentro. Ainda perversas. Torturando-o mais um pouquinho:

- Seu idiota.


- Cafajeste.

- Fraco.

Ele morre quadro horas depois abraçado ao pinto querido, deitado sobre uma poça de sangue e porra.


(Gilberto Caetano)

18.8.09

(Conto): GENGIVITE


MAURÍCIO GULART está com a boca fodida, bem fodida. Literalmente. Uma infecção generalizada por toda a gengiva que teima em não sarar, vermelha e inchada e que sangra. Sangra quando come até uma banana. Um bafo de sangue nauseante sai de sua boca sempre ao respirar já afasta os colegas de trabalho. Uma vergonha tamanha, que Maurício teme em esquecer as palavras. Namorada, esposa ou uma prostituta, esquece. Maurício está solitário. Decide no auge de uma bebedeira parar de sangrar. Parar de ter uma menstruação todos os dias saindo da boca.
Ele vai ao consultório dentário, uma, duas, três vezes, mas, a cada vez que o dentista olha para dentro de sua boca fétida, briga e quase o espanca por Maurício ser...
- Como você pode ser tão relaxado, cara!
- Doutor...?
- Doutor, o cacete! Doutor, o cacete! Me escuta, seboso. Lava isso com água oxigenada, número 10, passa o bendito do fio-dental toda vez depois que comer e só volta aqui quando essa porra parar de sangrar. Olha só, nojento! Eu estou quase perdendo o meu olfato por sua causa! Esse teu cheio impregna aqui de tal forma que eu tenho que te atender por último. Ó! Ó! Só de encostar o dedo nessa sua gengiva nojenta espirrou sangue no meu óculos!
- Doutor... eu tô pagando.
- Eu devolvo o dinheiro. Faço de graça pra você não aparecer mais aqui. Agora, tchau.
Maurício sai do consultório derrotado. Uma parada na farmácia. Quando chega em casa a primeira coisa que faz é escovar os dentes, passar o fio. Seu sangue escorre de sua boca pelas mãos através no braço e pinga pelo cotovelo. Sangue bem mais vermelho que de costume. Desce quente pelo ralo até cair na boca de um VERME que mora no cano da pia, alojado lá por dois meses. Sua alimentação nutritiva com base em sangue e água. Ele alimenta-se de cada gota de sangue de Maurício, nada escapa de sua boca e tem nessas suas refeições o seu orgasmo, é o que o faz engordar cada vez mais. Maurício sangra com a escova de dentes, depois mais com o fio-dental, e quando usa a água oxigenada, sua boca espuma como o Rio Tietê. O Verme cresce e agradece. Maurício totalmente insano pensando na cura, sangra na pia mais de seis vezes ao dia em casa. E o Verme Durante está cada vez maior, ferrando com o encanamento. Quebrando tudo.
Maurício trabalha como metalúrgico explorado e sabe disso e até gosta. Ele desce do ônibus que o deixa à três quarteirões de sua casa. Mesmo longe se escuta gritos. Algumas pessoas correm desesperada. Algo totalmente incomum para este pacato bairro. Maurício acha estranho, mas logo passa, continua andando. Em sua rua ele encontra uma mãe desesperada.
- Meu Deus! Alguém... minha filha!! Aquilo levou minha filha!
Ele vê o rastro de sangue e destruição pelo asfalto. Algumas casas destruídas. Gritos ao longe vindos da próxima rua. Tiros. Sirenes. Helicóptero em vôo rasante. E um grito totalmente animalesco de dor.
Os rastros de sangue pelo chão, vem de sua casa que está com o muro destruído. Maurício entra. O rastro de sangue vem de sua porta derrubada. Dentro da casa, o banheiro e a pia estão em milhares de pedaços. O rastro, que fora da casa era de sangue, dentro, é apenas algo viscoso como o de uma lesma. Apenas o espelho pendurado na parede continua intacto.
Maurício abre a boca para ver sua imagem refletida. Cutuca a gengiva com a unha. Claro que ainda sangra.
- Merda... eu nunca vou me livrar dessa porra de infecção.
Pessoas morrendo lá fora e que se foda o mundo. Ele pensa.

(Gilberto Caetano)

11.8.09

(Conto): O PASSEIO IMPROVÁVEL


escrito por FRANCISCO GLAUTER.

Era o quinto dia de trabalho da semana. O quinto dia em que ele se moía por dentro, por ter pressa. Uma hora em atraso! Ele...o chefe da repartição! Moía-se por não poder parar no camelô e futricar as novidades pirateadas: sua ânsia pelas stars do mundo pornô! O que dava pra fazer naqueles dias de pressa contínua, habitual, era correr os olhos em soslaio e flagar uma loira numa das capas. Americana? Brasileira? Não. Tcheca. Sim. Tcheca. As tchecas são a grande sensação da indústria! Atrizes tchecas davam a ele a impressão da perfeição, o sentimento que só a idealização lhe trazia. Cultas? Sofisticadas? Ninfomaníacas! Deus! Vou a Praga. Não! Budapeste não! Praga. Quero ver Veronica Zemanova...e Monica. Sweetheart? Não. Certamente não é esse seu sobrenome de batismo. Sim, ela está morando nos Estados Unidos. Veronica Zemanova também. Entraram pro time da indústria....como Meirelles e Iñárritu. E eu? E minha busca? Quero é descobrir quem é a loira da capa pirateada. Será ela o objeto de meu desejo ao longo de tantos anos de contemplação da forma? Há trinta anos...exatos trinta anos procuro por uma virgem de boca entreaberta(*). A mesma busca incessante e doentia de Benjamim Zambraia, a personagem central do romance de Chico Buarque, igualmente obsessivo e interessado pelas coisas inexistentes. Chegou o sétimo dia. Atrasado. Na hora precisa, depois de botar o primeiro pé pra fora do 376 que me levava ao centro de Diadema, mirei a repartição ilícita, povoada de gente. Como de costume as calçadas da avenida Marginal eram um mar de gente a ir e a vir. O que tanto fazem essas pessoas?...pensei egoísta! O objeto de minha ansiedade tinha lugar numa pequena barraca, no passeio da margem oposta ao terminal de ônibus, periférico a um restaurante de nome mal escolhido. Cheguei, tomei praça, acotovelado. Uma jovenzinha indaga a respeito do “ao vivo” do Calcinha Preta. Um jovem aparentando quinze anos mal vividos queria o último Batman. Eu seguia minha intenção premeditada, quando o 376 ainda vagava pela avenida Cupecê. Foda-se! Um atraso a mais, um atraso a menos... Além do mais, sou o chefe daquela merda! Parei, acossado pelo relógio comprado há alguns dias, como vã tentativa de evitar os atrasos constantes. Avancei deseducadamente, quase empurrando uma senhora que a meu ver não deveria estar ali. Certamente haveriam afazeres de sobra na casa de uma mulher como aquela: cuidar dos netos, da provisão dos que sustentavam a casa e chegariam esfomeados tão logo a tarde caísse. Aquilo era um baixio, não lugar de uma senhora! Território de gente desocupada e obsessiva. Pra casa, minha senhora! Desculpei-me tão timidamente de minha deseducação para com ela que minha gentileza foi completamente ignorada. Ganhei meu lugar em volta da empresa. Baixei os olhos. Nada! Minha possível virgem de boca entreaberta tinha ido parar nas mãos de um qualquer, que não saberia valorizá-la como tal. Sim. Ela se foi. Eu triste de não ter jeito(**), ladeado pela senhora incauta e pela jovenzinha excitada, seguro nas mãos minha parte do espólio enquanto escuto um fado de Amália Rodrigues, vindo de minha inesgotável memória musical. O céu se tornava chumbo, “bonito pra chover” para alguns. Outros diriam: como é feio o céu desta cidade! Abandonando o inútil de minhas reflexões, ergo os olhos e pago ao pregoeiro pelo que me sobrou do desastre: o “dèbut” da Bruna Surfistinha.

Francisco Glauter

São Paulo/Outono-2009


(*)Chico Buarque

(**)Wilson Rodrigues


Veja também:

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