Ela
nasceu numa viela sobre o concreto gelado, junto com irmãos que morreram com as
primeiras horas da manhã. A mãe, depois de recuperada suas forças, vai atrás de
algum resto para tampar os buracos de seu estômago.
Ela,
recém-nascida, acorda calada. Aprende os primeiros passos para fugir do fedor
do cadáver de seus irmãos mortos tostando no cimento quente.
Deus
abençoe o velho sujo que joga pela janela os restos de gordura do pedaço de
colchão-mole. Difícil primeira refeição, ainda mais brigando com as moscas.
Mais
alguns dias e ela estará morta. E ela nem sabe o que é morrer. Nem suspeita o
conceito de morte. Dizem que ela existe para trazer alento. Dizem que ela existe
para torturar. Dizem que ela existe para trazer o equilíbrio. E ela nem sabe
que ela existe. Nem o conceito de mãe. Apenas o que é vivo e o que é morto ou o
que mexe e o que não mexe.
O
concreto está esfriando. Ela ali, tremendo, com o estômago comprimido, pele
cinza seca, olhos sem lubrificação. A guerra está no fim. Mas para que serve
esta guerra mesmo?
Passos.
Risadas.
Dó.
-
Coitadinha.
-
Essa já era, vamos.
-
Não consigo. Já estou influenciada pela tragédia.
-
É duro mas passa. Daqui a pouco vai começar a reprise do Perdidos na Noite!
-
Tira a sua camisa.
-
Pra enrolar o bichano? Não dá. Eu gosto muito desta minha camisa.
-
Essa camisa é velha.
-
Por isso que eu me apeguei a ela.
A
Ruiva tira sua blusa rosada e enrola o filhote moribundo. Está aquecida e
confortável no colo da Ruiva pela primeira vez na vida.
-
Qualé, Ruiva? Você está de sutiã no meio da nossa rua!
A
vida não se resume a reprises de programas na TV. O casal a leva para uma
veterinária, a melhor do bairro, aquela que marchou na Avenida Paulista contra
a violência contra os animais e apanhou dos cassetetes dos humanos de farda
cinza.
Ela
ganha remédios, vitaminas, um saco de ração sabor peixe e o nome de Felina.
-
Felina?
-
É muito óbvio?
-
É como se o meu nome fosse Crioulo e o seu Ruiva.
-
Eu gosto de Felina e vai ser Felina. Né, Felina? Gut, gut, gut.
Felina
dorme nos pés da cama junto com os donos. Aprende pra que serve a caixa de
areia, a beber água no mini-chafariz, aprende as palavras faladas, aprende o
que é sexo.
Felina
está satisfeita. Tem seu território demarcado. Gordura dentro de sua pele,
longe das moscas. Sua pele está cinza e linda.
Os
meses passam depressa e a gata afortunada tem reações estranhas, começa a roçar
nas pernas de qualquer um que se aproxime. Um calor que sobe por dentro. Um
desespero silencioso de querer a liberdade para encontrar o prazer.
-
Felina está no cio.
-
Dá chocolate pra ela, Ruiva.
-
Putz. A veterinária disse que era pra ela ser castrada antes do primeiro cio.
-
Agora já era.
-
Será que ela terá problemas psicológicos por isso?
-
Vamos esperar o cio terminar e aí castramos.
“castrar?
o que é castrar? é bom? é ruim? minha Bastet, o que é isso que eu sinto? estou
sentada o dia inteiro no sofá com o Crioulo na frente da TV e o meu problema
não é televisionado. está quente. preciso de ar. preciso de ar”.
Ruiva
sem perceber deixou a porta dos fundos aberta e Felina está no telhado. Miando.
Gritando. Desesperada. O bairro inteiro escuta.
“Bastet
me ajuda!”
“esquece,
gatinha”.
“o
quê? por que?
Este
é um bairro classe média onde as casas foram construídas por um padrão: do
mesmo tamanho, muito próximas e com gatos nos telhados. Cada telhado com um.
“como
é mesmo o seu nome, gatinha?”
“Felina”.
“Felina?
Hummm. Felina, minha querida, esquece de ficar pedindo pra Bastet ou qualquer
outro que não irá funcionar. tá vendo aquele gato branco lindo ali no fundo? o
nome dele é Mingau, como o Mingau da Magali. castrado. aquele outro bonito,
gordo, com uma listra marrom. o nome dele é Canjica”.
“castrado?”
“é”.
“mas
o que é castrado?”
“aquilo
que faz pra não existir mais nada entre nossas pernas. nada entre as pernas do
Tobias. nada entre as pernas do Milu. nada entre as minhas pernas. e logo você
também não. nada de prazer, acasalamento ou filhotes. nada de ter as costas
arranhadas. se você acha que a frustração passa com o tempo? não passa. por
isso que o Garfield é gordo”.
“eu
vou fugir para descobrir o que eu vou perder”.
“esquece.
na rua você tem frio e fome e veneno nos telhados. o dono daquela casa azul e
amarela não gosta de gatos. muitos amigos meus morreram naquele quintal. eu
queria me vingar, mas envelheci e engordei deitado na cadeira acolchoada da
cozinha. além do mais, Felina, todos os gatos do bairro são castrados”.
Felina
volta para o sofá. Submissa. Calada. Com a mente manipulada pelos vizinhos.
Zonza pelo cheiro. Cérebro derretendo pela radioatividade idiota da nova novela
das 21 horas.
“passar
frio e fome de novo? não obrigada”.
E
Felina não fará a revolução. Mas antes ela rasga o sofá e mija em todos os
móveis da sala.
(Gilberto Caetano)
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