20.10.09

* * *


Em certo momento da noite

Bateu uma saudade

De uma época em que ele gostaria que fosse diferente

Que fosse mais simples e sincera

Que tivesse aprendido antes do tempo

Uma tristeza tão inusitada e oportuna

Que o fez refletir sobre hoje

E só isso.

13.10.09

(Conto): QUANDO A FESTA ATINGIR O GRAU ALCOÓLICO NECESSÁRIO


- Eu poderia ter ido à reunião.
- Sem chance. Você nunca vai.
- Você está dando em cima de mim?
- Eu sou hetero. Eu tenho namorado.
- Ser hetero, homo ou qualquer outra merda não significa nada.
Carla ri alto. Algumas pessoas que estão na Exposição a olham. Carla sabe chamar a atenção, tanto por sua risada ou gestos ou lábios ou coxas... seria difícil um escritor sem preguiça descrever, diria que ela seria como uma Silvia Saint mais volumosa. Vinte e seis anos.
- Por quê aqui? – ela pergunta.
- Você precisa abrir sua mente, Carla.
- Abrir minha mente? Olhe ao redor, Neli. Um bando de gente metida a intelectuais olhando estes plásticos derretidos, ferros tortos e tinta sem nexo em um pano na moldura. Está vendo aquele cara ali? – um homem magrelo olhando fixamente para uma pintura de algo parecido com um celular em volta a riscos vermelhos – ele está ali a 20 minutos. Ele não tem a mínima idéia do que aquilo quer dizer!
- E você sabe?
- Neli, isso não vai me ensinar a ser uma stripper melhor.
- Talvez não. Mas..
- Neli, Neli... Pára de querer ficar me analisando. Pára de querer me ajudar. Você não tem vida própria não? Você é uma morena gostosinha, magra, teus pais te sustentam, tem até um namorado chato que talvez, eu disse, talvez, fode direito...
- Fala baixo.
- Por que? Esse bando não fode? Você vai pra’quela reunião de programa de prevenção de DST / AIDS. Você só tem vinte e dois anos, vai viver!
- Eu só gosto de conversar com você, Carla, é só isso.
- Tá bom. Mas que aqui é chato pra caralho, isso é.
- É... um pouco.
- Da próxima vez me leva pra um barzinho e paga a cerveja. Que porra é essa?
Elas param em frente a uma entrada para uma Instalação. Não conseguem ver o que acontece lá dentro, nenhum som, nada. Ao lado uma placa com o título da obra: Quando A Festa Atingir O Grau Alcóolico Necessário. Autor: Greco Lima. Data: Junho de 2005.
- É uma vídeo-instalação – diz Neli, abrindo a cortina preta e grossa. – Festa e álcool devem dizer algo pra você.
- Ééé – Carla responde rindo.
Elas entram. Passam por várias cortinas, cada vez mais pesadas, espessas e escuras. Um cheiro estranho de vinho. Carla e Neli chegam a um quarto, chão iluminado por pequenas lâmpadas vermelhas. Carla olha, procura por algo e pergunta:
- Não era pra ser uma instalação de vídeo?
- E se eu estivesse dando em cima de você?
- O quê, Neli?
Um raio fino e fraco de luz cruza o espaço até uma das quatro paredes. Ela cresce e logo toma conta de toda a parede. Outras três surgem para as outras três paredes. Luz branca para vermelho. A imagem no vermelho se movem como areia. Um som de burburinhos. O vermelho chapado com areia movimenta até formar pessoas, paredes, chão e teto. O vermelho fica colorido. Carla e Neli ficam cercadas de imagens de pessoas em uma festa muito comportada. Homens e mulheres, brancos e negros. Garçons passam com bandejas com taças com vinho. Carla fica salivando. Desejando apenas algumas gotas. Neli vê um homem muito parecido com seu namorado: alto, negro, do tipo bem sério que quando sorri cativa qualquer mulher. Ela aproxima da imagem na parede e esbarra em uma taça e derrama vinho pelo chão. A jovem pega o objeto do chão.
- O quê é isso? – pergunta Carla.
- Eu achei no chão. Estava com vinho.
As pessoas nas imagens bebem mais. Um homem olha para Carla, bebe vinho, seus olhos parecem penetra-la. Ela se aproxima. Passa a mão na parede, a imagem do homem fica sobre sua mão. Ele coloca a língua para fora e lambe.
- Caramba!
- Que foi?
- Eu senti como se esse cara lambesse minha mão.
- Aquele cara que está rindo?
- É.
As pessoas nas imagens bebem mais. O cheiro do vinho mais forte. Neli e Carla começam a ficar um pouco zonzas. A música techno indiana inunda como uma enxurrada sem violência, chega ao cérebro como heroína.
- Vamos sair daqui – Carla pede a Neli que nem escuta.
As pessoas bebem mais e mais e mais. Sorriem. Gritam. Um deles tira a camisa e rebola sobre o sofá, outro homem dança com ele, se agarram, se beija. Mais homens agarram o alegre sem camisa, o seguram e o estupram. Três homens seguidos gozam dentro dele. Neli fica estática. Carla começa a dançar. Outra taça de vinho no chão. Carla bebe. Neli a puxa para a saída. Mas onde ela está? Por onde ir? Elas são empurradas e caem no chão?
- Isso é brincadeira, né?
Elas levantam, são empurradas de um lado para o outro. Nas imagens, as pessoas tiram suas roupas. Homens estupram homens, mulheres estupram mulheres. E invertem as posições. O gozo explode, mistura ao vinho e enche a sala. Neli e Carla molham os pés. Gritam por socorro em vão. Eles riem e continuam gozando, gozando, gozando. O vermelho do vinho com o branco do gozo se misturam e chegam a metade da canela da stripper e da aluna de psicologia. Cabras passam nadando de um lado para o outro, uma delas pára.
- O quê foi? – fala a Cabra.
- Me diz que essa cabra não está falando? – murmura Carla.
- V-Você s-sabe sair daqui?
- Mergulhem.
A cabra mergulha e some.
- Mergulhar na porra?
- Nunca gozaram em você antes?
- Já mas nunca nadei em porra com vinho.
Elas respiram fundo e mergulham. Nadam. De início com muito esforço depois se deixam levar pela correnteza até desembocar em uma piscina. Finalmente conseguem respirar. Carla quer gritar caralho bem alto mas Neli tapa sua boca, pede silêncio. Elas vêem os estupradores e os estuprados dentro da sala ao lado da piscina. Os homens e mulheres nas imagens na vídeo-instalação agora bem vivos e reais. Fechados por paredes de vidro. Um Sol de luz preta deixa o céu como a noite mas há um calor como o dia, nenhuma sombra.
- A gente tem que fugir daqui.
- Como? Você sabe onde está?
- Você prefere ficar esperando ser estuprada?
- Não estou vendo ninguém chorando lá dentro.
- Carla, você é retardada? Isso não vai acabar bem pra nós.
Neli puxa Carla para fora da piscina e se afastam Deles mas param na borda para não cair no vazio. A sala de vidro e a piscina e todos estão sobre uma fôrma redonda e a fôrma sobre uma mão de mármore. O Sol Preto desce.
- Puta-que-o-pariu – diz Neli.
Eles param de estuprar, beber e gozar e aproximam da parede de vidro. Todos encaram as duas moças.
- O quê a gente faz?
- Vamos pular.
- Pular pra onde, Neli?
- Para o que tiver lá embaixo.
- Prefiro ser sodomisada.
O Sol Preto desce rápido. Eles batem no vidro que racha e quebra. Homens e mulheres, nus e soados, correm para agarra-as. Carla dança, rebola, faz caras e biquinho de desejo, faz o que sabe a stripper mais gostosa. Neli pula – ela não sabe rebolar. Cai direto no Sol, que está abaixo. Sua carne dissolve, o esqueleto permanece. Ela caminha sobre a superfície quente. Neli não consegue mais pensar ou sentir algo que não seja uma confusão sem tamanho. Olha sua mão, tórax, pernas. Ossos, apenas ossos. Esqueletos de cabras passam por elas. Ela olha a mão de mármore que segura a fôrma. Vem gritos lá do alto. Neli senta e espera.
Carla foi estuprada. Algumas vezes. Depois dezenas de vezes. Horas depois, centenas de vezes. Sua boceta e cú estão como ferro incandescente. Não consegue mexer nada da cintura para baixo. Ela se arrasta até a borda e grita o nome de Neli. Neli sentada sobre o Sol escuta mas o que pode fazer? Continuar sentada talvez para sempre. Carla faz mais um esforço e se joga da fôrma. Cai no Sol e fica só o esqueleto, e o melhor, como sua pela e órgãos se foram. Sem dor na boceta, sem dor no cú. Ela consegue ficar em pé e pula de alegria.
- Não sei porque você está tão alegre – fala Neli.
Carla aproxima, senta ao seu lado.
- Você não sabe a dor que é.
- Falei que não ia acabar bem.
- Será que a gente morreu na sala?
Silêncio.
- Carla?
- Humm.
- Sabe, você não me respondeu se eu tivesse dando em cima de você.
- Eu não acredito. Olha isso.
Logo a frente um gigante olhando para elas. Observando cada detalhe.
O homem magrelo observa o quadro de um Sol Preto, atrás uma mão que segura uma fôrma, que tem uma casa de vidro quebrada e pessoas se amando nuas e sobre o Sol duas pequenas caveiras.
- Esta mão segurando a fôrma é o clichê de um quadro surrealista, não? – fala o homem magrelo.
O quadro é rasgado e de dentro dele saem Carla e Neli ainda como esqueletos. Todos ficam estáticos, por alguns segundos. A música chata pára. Qualquer relógio pára. A Terra fica sem girar. Um efeito de sombra como o efeito da Conga, A Mulher Gorila, Neli e Carla voltam a ter carne – boceta e cú estão incluídos – e estão nuas. Todos na exposição de artes plásticas aplaudem. Grande performance. Alguns gritam entusiasmados e perplexos.
Carla e Neli se abraçam e andam nuas até a saído do prédio. Que alívio, que sensação ótima elas sentam. Andam pela calçada e admiram o Sol Preto da noite que as aquece.
- E agora? – pergunta Neli.
- Vamos pra minha casa.
- E?
Carla gargalha tão alto que toda a cidade acorda.
Por onde elas passam, as pessoas tiram suas roupas e trepam sem preocupações. Trepam e gozam. E o gozo escorre pelo asfalto junto com o suor e o sereno da noite e formam poças. Homens e mulheres, negros e brancos, se divertem nelas. E tudo está normal novamente como um quadro em uma exposição chata.

(Gilberto Caetano)

6.10.09

(Conto): A TERRA DAS SOLUÇÕES FÁCEIS

ZULEICA DA SILVA é uma velha com o rosto muito mais envelhecido do que se você ver em seu RG. Ela veste roupas surradas, sujas e rasgadas – não poderiam ser diferentes. Ela caminha sete quarteirões do ponto de ônibus onde desce até o banco financeiro onde se senta todos os dias para pedir esmolas. Caminha com extrema dificuldade auxiliada por uma bengala.

Ela senta no seu ponto, estende o pratinho de plástico para que as pessoas joguem suas moedas e tira os panos que cobrem as suas pernas. Nas pernas existem grandes feridas, do tamanho da palma da mão de um adulto e em carne viva. Verdadeiramente repugnantes. Cheiram a podre. E essas feridas doem e muito. Zuleica fica com os olhos cheios de lágrimas a todo o momento. Dor, dor. Moscas nojentas pousam nas feridas. Quando começou a mendigar, ela às vezes cobria as pernas por causa das moscas mas quando o fazia as pessoas não se comoviam com seu sofrimento, as feridas tem que ser vistas e quando as pessoas a vêem elas jogam suas moedas cheias de pena e remorso e logo se esquecem de Zuleica depois de ultrapassarem duas esquinas.

O dia passa lentamente. Seu almoço é uma coxinha que um menino de rua lhe comprou. Sobram treze reais e quarenta e cinco centavos ao fim da tarde. Ela guarda seu dinheiro junto o pratinho de plástico, cobre as feridas nas pernas, levanta com dificuldade. Caminha de volta por sete quarteirões até o ponto de ônibus. Sua condução chega, ela entra, não paga, ninguém consegue ficar ao seu lado. O cheiro é insuportável, as feridas fermentam durante o dia ao Sol e no ônibus, o ar fica irrespirável. Zuleica tem a vontade de ter um diálogo qualquer com alguém, conversar sobre qualquer coisa, ela treina às vezes de frente ao espelho, esperando que no dia seguinte isso possa ocorrer. Falar de como foi seu dia, das coisas que viu. Ninguém fica perto, todos se afastam. Às vezes tem medo de que a única frase que saiba dizer é:

- Me ajude. Uma esmola, por favor.

E é realmente o que as pessoas escutam de sua voz. As únicas frases.

Ela chega a sua casa de madeira, afastado de tudo, quase no meio de uma mata. Coloca o dinheiro em um pote de plástico. Toma banho de água quente. Veste roupas velhas e limpas. Come seu jantar: arroz, feijão, ovo mexido, farinha e com uma pimentinha que arde pouco mas deixa uma sensação boa na boca. Quando satisfeita, lava a louça e pega uma pequena espátula em cima do armário.

Ela senta no sofá e com a espátula raspa as feridas. Todas. Uma a uma. Dor, dor. É muito para Zuleica mas ela não cede. Raspa todas para que continuem a ficar em carne viva.
Zuleica da Silva faz isso todas as noites.

Amanhã será outro mesmo dia.


(Gilberto Caetano)

Veja também:

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