6.11.15

(Conto): A CIDADE DA MULHER ABUTRE

A corrupção está na formação do povo brasileiro. Enxergamos apenas a ponta do iceberg. Reclamamos dos políticos e esquecemos os empresários. Reclamamos da indústria da multa, mas se paga o cafezinho do guarda. Baixar arquivo pirata, sonegação de impostos, furar filas, a lista é grande. É o jeitinho brasileiro para se dar bem. É um exagero generalizar? Claro. Em tempos de politicamente correto pior ainda. A corrupção está na raiz. 

Esta é a história de JANAÍNA SILVEIRA. Jovem enfermeira recém-formada. Os primeiros dias num hospital da cidade do Rio de Janeiro. Na emergência ela descobre o quanto o Sistema é precário e trabalha incansavelmente para que continue assim, alguém sempre se beneficia com isso. Uma reforma não concluída, remédios caríssimos que são extraviados, planos de saúde que financiam campanhas políticas em troca de novas leis.
Janaína percebe o Sistema. Aprende com ele. 
 

Hospital público do estado perto de uma comunidade gigante. A emergência não para. 

Num dia nem calmo nem estressante ao extremo, Janaína se vê fora do corpo quando presencia o seguinte: 

Entram pela porta da emergência causando um susto em todos, três jovens por volta dos 25 anos. Dois na ponta, armados com fuzis carregando o do meio baleado. Dois buracos grandes pelo corpo, jorrando sangue. Encontram uma maca vazia - sorte e raridade - e jogam o ferido sobre ela e saem gritando: 

- Não esquece dele! Não esquece dele, porra! 

Os dois traficantes somem mais rápido do que apareceram. 
Janaína está ali com o cara agonizando na frente dela com dois tiros do abdômen. Chegam o médico atraído pelos gritos de dor e mais dois enfermeiros e o segurança. 

- Quem trouxe ele? - pergunta o médico. 
- Bandidos - ela responde com medo. 
- Merda - ninguém fala mas todos ali pensam, menos a jovem enfermeira, ela não entende a gravidade de toda a situação. 

O médico rapidamente revista os bolsos e cintura do ferido. Não procurando por mais buracos de bala e sim o maldito dinheiro. Encontra e deixa no mesmo lugar escondido. Empurra a maca para dentro do corredor mais longe possível da entrada.

Dor. Agonia. Nada disso interessa. 

O médico pega o bolo de dinheiro do traficante entra numa sala puxando estupidamente Janaína pelo braço. 

- Como é o seu nome?
- J-Janaína. 
- Toma. 
- N-não, doutor. 
- Pega, cacete! Esconde na tua calça. 

Ela obedece.

- Depois a gente divide – ele diz.

Eles saem da sala compressa. Os dois enfermeiros e os seguranças esperam pelo pior e o pior entra bufando pela emergência: Dois Policiais Militares. Com fuzis ainda quentes do tiroteio. Correm até o moribundo sobre a maca.  

- Esse aí que é o bandido! - grita um deles. 
- É - responde o médico. 

Eles revistam o corpo. 

- Estou procurando pelas armas. 

Está porra nenhuma. 

- Vocês não viram nada? 
- Não. Chegou sem nada. 

O traficante ainda agonizando com um medo pior dos militares do que da própria morte. 

- Caralho, irmão! Vocês vão cuidar dele mesmo sem os parças deixarem nada? 
- Não deixaram. Quer revistar todo mundo – o médico enfrenta. 

Janaína gela. 

- Vamô embora! Vamô embora! 

Os dois saem apressadamente da mesma forma que entraram. 
Um alívio total no corredor até mesmo para o ferido. 
O médico puxa a enfermeira de volta para sala, os outros três também entram salivando de alegria. 

- Cadê? 

Ela tira o bolo de dinheiro da calça. O médico reparte por igual entre os cinco. Mais 10% para ele. 

- Se fosse na rua eles teriam pego. 
- Os bombeiros são os primeiros que fazem a rapa. Se sobrar algo aí é pra esses aí. 

Janaína nem presta atenção no papo entre eles. 

- E se ele tivesse me revistado? – ela pergunta ainda com o gelo derretendo pela espinha e indo direto para a bexiga.  
- Eles nunca revistam enfermeiras. 

Os quatro saem, ainda precisam cuidar do jovem traficante.

Janaína permanece ali com as mãos tremendo. Coloca o dinheiro no bolso e respira fundo. Quatro dias de trabalho na emergência e a criação de mais uma trabalhadora do Sistema.  A ficha realmente caiu e isso é só o começo. 
Hoje ela é uma enfermeira recém-formada. Ninguém imaginaria que 30 anos no futuro será a dona do Rio.

E terá um apelido carinhoso. 



(Gilberto Caetano)



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