29.11.13

(Conto): A FOICE AFIADA COMO O DIABO



O que ele está pensando agora trancando na cabine da bilheteria? CARLOS QUEM seria apenas um jovem entediado? Um único trabalho de quinta até domingo. O resto dos dias lendo, assistindo filme, deitado num marasmo de calmaria na casa que foi de seus pais. Apenas uma tentativa de relacionamento sério.

- Você não acha que nosso relacionamento deveria dar um passo adiante? - Carlos fala.
- Pra que? - ela responde.

Dias entediados, cada vez mais chatos, cada vez mais insuportáveis. Sexo casual não tem mais graça. Cerveja no boteco de rock, AC/DC no telão, os caras do Motoclube estacionando, muitas lésbicas desfilando de um lado para o outro e o dono do bar jogando pôquer online.

Casa. Trabalho. Bar. Casa. Bar. Casa. Trabalho. Motel. Casa. Casa. Casa. Bar. Casa. Bar. Trabalho. Casa. Trabalho. Casa. Bar. Casa. Casa. Casa. Livraria. Casa. Casa. Trabalho. Bar. Casa. Loja de ferragens.

- Bom dia – diz a atendente.
- Oi – responde Carlos.
- Posso ajudar?
- Tá crescendo um mato estranho no meu quintal.
- Isso aqui pode ajudar.
- O que é.
- É uma foice. Você não conhece uma foice?

Casa. Quintal. Carlos tira o mato facilmente. Apenas um fiapinho não sai, a foice está cega.
Casa. Loja de ferragens.

- Oi.
- Oi. Tá cega.
- O quê?
- A foice.
- Já?
- Já.
- Toma.
- Pra quê eu quero uma pedra?
- Pra amolar a foice?
- Como?
- Assim. 

A atendente amola a foice.
Carlos volta para casa com a pedra e a foice. Termina de limpar o quintal. Sente um cansaço natural de um tarde de sábado de trabalhos domésticos. Fica ali, sentado na antiga cadeira de balanço embaixo da árvore. A cadeira que era de sua avó. Observa atentamente a foice, sente o fio de corte ruim. Pega a pedra e a amola. A tarde passa rápido.
Algumas noites depois do trabalho, Carlos senta na cadeira e amola a foice mesmo sem precisa, uma garrafa de vinho gostoso e barato. Algumas vezes percebe que fica pensando na atendente.

Casa. Trabalho. Casa. Amolando a foice. Trabalho. Casa. Bar. Casa. Trabalho. Casa. Amolando a foice. Trabalho. Casa. Amolando a foice. Amolando a foice. Amolando a foice. Loja de ferragens.

- Como é o seu nome?
- Ágata. E o seu?
- Carlos.
- O que vai querer hoje.
- Chave de fenda.

A chave nunca foi usada.
O saco de parafuso também não.
A furadeira também não.

Carlos continua amolando a foice todos os dias. Pensando no rosto da Ágata e o instrumento cada vez mais afiado.

- Oi, Ágata.
- Oi, Carlos. O que você quer hoje?
- Você.
- Hã?
- Quero uma nova pedra para amolar.
- Você viu essa nova foice?
- Linda - ele diz olhando fixamente nos olhos dela. 
- Vai levar?
- A foice? - decepcionado continua - Vou.

Uma nova foice um pouco maior e brilhante. Carlos continua amolando, amolando, amolando as duas.

- O que você está precisando pra hoje, Carlos?
- Nada de especial. Eu trabalho na bilheteria de um teatro.
- Bacana.
- Você quer assistir uma peça?
- É caro? Teatro é caro.
- Eu te dou um bilhete. 
- Dois.
- Dois?
- Senão eu vou sozinha. Não gosto de ir sozinha ao cinema. Então também não vou ao teatro.
- Tudo bem. Amanhã eu passo aqui e te dou os ingressos.
- Por que você ficou assim?
- Assim como?
- Seu rosto mudou de repente. Está decepcionado com o que?
- Com nada. É que eu preciso ir.
- Eu vou com a minha prima. Quer dizer, eu vou chamar pra ir comigo. Se ela topar, eu vou. Tá vendo? Você mudou novamente. Está mais alegre. Você não sabe esconder o que sente, né?

Carlos vai embora com um sorriso do tamanho de sua nova foice. A cada hora que passa mais ansioso ele fica e mais amola as foices.
A campainha toca. A vizinha logo vai falando:

- Carlinhos, meu filho, toma cuidado que ontem foram assaltar o filho do Seu Josevaldo e deram um tiro nele. Graças a Deus ele não morreu. Mas foi quase. Cuidado meu filho.

Carlos Quem nunca foi medroso. Sempre chegou em casa de madrugada por causa do trabalho. Desde que seus pais morreram e lhe deixou o sobradinho, sempre morou sozinho, nenhum medo até ali. Se a rua esta sem segurança, ele sabe como se defender. Cada dia ele escolhe uma foice diferente para ir ao trabalho. No dia especial com o encontro de Ágata no teatro, Carlos pegou a mais sincera, bonita e atraente das foices, afiada até o talo.
Carlos entra na cabine da bilheteria. Hora: 16h.
Coloca a foice escondida embaixo do balcão. Ele pensa que pode acontecer algo apenas no caminho de volta para casa, e se conseguir a proeza de voltar com Ágata, nenhum vagabundo irá interromper esta noite.

16h30.
Os primeiros bilhetes vendidos.

- Sobre o que é essa peça? - pergunta uma jovem.
- Uma comédia sobre o nada.
- Dá quatro. Tudo meia.

17h30.
O tempo passa vagarosamente. Carlos poderia amolar sua querida foice para passa o tempo, pensa seriamente sobre isso.

18h23.
O movimento começa mesmo às 19h20.

19h01.
Um casal fica olhando por longos minutos para a fachada do teatro. Discutindo se vão assistir ou não a peça sobre o nada. Vão até a bilheteria ainda um com raiva do outro pela pequena briga.

- Duas inteiras? - pergunta Carlos.
- Sobre o que é essa peça mesmo? - também pergunta o marido?
- Sobre o nada.
- Que merda é essa? Tipo Seinfeld.
- Não sei.
- Você nunca viu Seinfeld?
- É obrigatório assistir?
- Pra você é.
- Eu só vendo o bilhete. É muito simples ou você quer assistir ou não quer assistir, ou você quer comprar duas inteiras ou meias. O que vai querer?
- Eu vou reclamar com o gerente.
- Calma, amor - diz a esposa.
- Cadê o gerente?
- Não tem gerente.
- Essa merda não tem gerente?
- Calma, amor.
- Tudo bem querida eu resolvo isso. Tem alguém aqui que pode me dar algum tipo de informação correta sobre essa merda de peça? Ou você é burro o suficiente pra isso também?

Carlos respira fundo. Passa a mão suavemente sobre a foice embaixo do balcão. Começa a fazer microplanos de como assassinar uma pessoa e conseguir fugir. Ali naquele ambiente é impossível, precisa de um lugar isolado.  Ele precisa arrumar um jeito deste mané entrar. Estripar uma pessoa não deve ser difícil.

- É uma peça sobre o nada. Sobre o cotidiano de um grupo de amigos que se encontram em uma balada, começam a beber cada vez mais o que aumenta as confusões e situações engraçadas. Só isso... Senhor. Uma ótima comédia para essa noite... Senhor.
- Aaaaahhh, dá duas inteiras. Vamos ver, vamos ver.

Carlos entrega as duas entradas.

19h40.
Finalmente elas chegam. Ágata e Camila.
Carlos entrega os dois convites totalmente encantado. Ágata fala baixo perto do ouvido dele.

- Você não consegue mentir mesmo.

Elas entram no teatro.

- Ágata? Ágata? Espera.

Carlos chama em vão.

20h05.
Os três toques. A peça começa. Carlos fica apenas com o som das risadas. Ágata aparece enquanto Carlos fecha a bilheteria.

- Por que você me disse aquilo? – ele pergunta.
- Você se apaixono pela minha prima.
- Claro que não. Isso é impossível.
- Já vi acontecer antes.
- Eu fique 3 meses pra criar coragem pra te chamar pra sair.
- Ela não é mais bonita que eu?
- Não sei.
- Qualé?
- Talvez. Ela é mais bonita. Você sabe disso. Esquece ela. Peraí... Se você se acha menor perto da sua prima, por que você deu o ingresso pra ela? Isso é algum tipo de teste?

A plateia gargalha. Realmente é uma boa peça sobre o nada.
O marido reclamão sai do teatro com cara amarrada e vai direto para o banheiro. A oportunidade perfeita Carlos pensa. O problema é fugir depois. Ágata ainda esta ali, parada falando sobre sua prima, algo como ela roubar seus namorados. Ágata aprendeu a testa-los, se passar da prova do primeiro encontro com a prima o cara está realmente interessado nela.

- É a primeira vez que eu penso em assassinato.
- Como assim?
- Hã? Oi? O que?
- Assassinato.
- Eu pensei em voz alta.

Eles ficam se olhando por algum tempo. Ágata esta mais curiosa do que assustada.
As risadas da plateia. A peça está na metade.

- Se eu te mostrar uma coisa você não sai correndo e nem grita ou qualquer outra reação estúpida?
- Estou preparada pra qualquer coisa.

Ele pega a foice debaixo do balcão.

- Estão assaltando a minha rua e essa é a única forma que eu tenho de me defender.
- Você traz a foice pro seu trabalho? - ela pergunta sorrindo.
- É no caminho pra casa que o bicho pega. Vai saber.
- Você tem coragem de matar alguém com isso?

O marido carrancudo e chato sai do banheiro e volta para o teatro.

- Esse cara. Ele me tirou de burro e o caralho. Só não sai do sério pra não perder o emprego. Mas só pensei.
- Só pensou, Carlos?
- Aqui seria impossível. Mesmo assim não teria coragem.
- E minha prima?

Uma saliva quase seca, quase como uma água ardente, desce pela garganta de Carlos Quem.

- Ela fodeu a minha vida inteira. Sempre fiquei em segundo plano na minha família por causa dela. Tudo pra ela sempre foi mais fácil. Tudo sempre sai do jeito que ela quer. Mimada. Egoísta. Odeio ela. Você tem alguma coisa pra beber em casa?
- Vinho. Talvez alguma vodca.
- Você mora sozinho?
- Eu e minha coleção de foices.
- Elas estão afiadas?
- Sempre afiadas. Afiadas como o se não precisasse de mais nada. Como se o mundo sofresse uma tempestade solar e elas fossem a nossa única chance de sobre viver.
- Entendi. Há a possibilidade de ir para a sua casa?
- Nós dois?
- Nós três.
- E as Bebidas?
- Pra criar coragem.
- Sexo?
- Só depois.

Gargalhadas da plateia. Fim da peça. Fim do trabalho. Casa. Vodca. Limão. Gelo. Risadas. Constrangimento. Foice. Sangue.

Ágata é estripada da virilha até a garganta. Fácil como um açougueiro tirando aquele pedaço de picanha para o churrasco de Domingo.
A prima Camila sempre consegue o que quer com um simples olhar e uma fala suave no pé do ouvido. 



(Gilberto Caetano)


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